O cortejo de Iemanjá e a paz dos filhos de Gandhi

O cortejo de Iemanjá e a paz dos filhos de Gandhi

Por Eneida Damazio

Ontem fui homenagear a Rainha do Mar, Iemanjá estava linda. Amada por todos, mas para essa homenagem acontecer, foi preciso muita garra de muita gente, principalmente dos componentes do Afoxé Filhos de Gandhi, uma associação que por 68 anos se dedica à preservação da herança cultural africana.

Sede dos filhos de Gandhi

A sede da associação mostra a força dessa luta incansável. O prédio mesmo muito maltratado pelo tempo tem a sua imponência. As pedras que ainda o mantém de pé exalam muita História, história dos negros e negras que viveram ali na área do Centro do Rio , próxima à zona portuária que  era o centro  da chegada e da comercialização de escravos, história da cidade que foi se modificando com o passar do tempo, história da própria associação que vai tentando, quase que sem recursos, manter viva uma tradição da cultura oral.

Na porta, o presidente Carlos que a todos convidava  para entrar com doçura e conhecer o ritual. Enquanto os últimos preparativos eram feitos para que os balaios- grandes cestos forrados com tecidos de um azul claro tão suave e em que havia com flores brancas, em sua maioria, perfumes, pentes espelhos fizessem jus à beleza e ao axé da  dona do mar. A sala lembrava até uma daquelas grutas que escondem belezas e mistérios do fundo do mar.

Fui acolhida por Regina Gandhi, que além de ser iniciada e é a diretora do Afoxé Filhos de Gandhi  Ela me contou da luta para manterem a instituição com parcos recursos e sem o apoio mais consistente de autoridades que pudessem fazê-lo, mas incansavelmente colocam a cada ano o Afoxê na rua. Perguntei então porque o nome do afoxé faz essa ligação com Gandhi. Me respondeu, sem dificuldade: era uma homenagem à cultura de paz que esse indiano deu como exemplo ao mundo. Sim, lembrei que há um difícil equilíbrio ao não abrir de mão de seus objetivos, principalmente quando eles são éticos e relevantes como os do Afoxé Filhos de Gandhi ,através de uma cultura de paz, de harmonia. São pautados na ideia de construir ,  plantar e fazer brotar, fazer crescer.

Vi também a história viva que se formava. Conversei com Miriam Generoso, uma linda e jovem negra que faz parte do Afoxé. Vestida de azul e branco, os lábios também pintados na cor azul, parecia a materialização da própria Iemanjá. Perguntei-lhe se ela era filha deste orixá. Um lindo sorriso se abriu no meio de todo aquele azul. Ela apenas me disse não. Não ousei perguntar qual era seu orixá, porque esse é um dos segredos que não se compartilha com estranhos mas me disse com uma singela altivez fazer parte  do corpo de dança do Afoxé. Olhei-a feliz… a História e a Tradição se faziam vivas e pulsantes ali na Miriam, no seu corpo e na sua dança. 

Na porta, à espera  da saída do cortejo de Iemanjá, vejo muitos jovens, o que foi uma grata surpresa, pois geralmente nas religiões, principalmente nas de matriz africana, poucos são os  jovens que são adeptos ou frequentadores.

Outra surpresa é que esses jovens têm um perfil muito diferente do que se esperava. Eram aquela garotada que curte a noite, o circuito cultural do centro da cidade. Pensei até que estavam ali por terem saído de alguma balada e estavam na “saideira”, aquele último programa que a gente acha pelo caminho de volta para casa já bem de manhã e ao qual nos agarramos pra esticar a alegria de estar com os amigos.

Ledo engano o meu. Toda aquela força de vida jovem que ali estava, estava por causa de Iemanjá.

 Conversei com alguns: a Ana Carolina, estava ali pela primeira vez. A  comemoração na Bahia ela conheceu no ano passado e ficou feliz de saber que rolava também aqui no Rio com o  Afoxé Filhos de Gandhi. Veio na indicação do Rafael que pesquisa a cidade e reúne material para um livro.

Muitos rapazes, o que também é um pouquinho diferente do que  se está acostumado a ver, pois a religiosidade geralmente atrai mais mulheres do que homens. Numa rodinha estavam  o Tiago, sem h, como ele frisou com bom humor  que do alto de seus 29 anos veio pela primeira vez ver cheio de curiosidade  como era o Afoxé sem ser saída  de Carnaval. Claro que estava entusiasmado, pois veio com o amigo Rafael , já era veterano da cerimônia: era a segunda vez que vinha e chegara bem cedo, desta vez  para não perder nadinha de nada como fez questão de frisar. Todos muito antenados, inteligentes e o mais importante com um respeito pela religião. Nenhum deles era adepto nem frequentador e estavam ali, era óbvio  por ser algo diverso deles. Mas não tinham aquele olhar nem aquela postura de encarar o ritual nem seus adeptos como  se estivesse vendo bichos exóticos em um zoológico, muito menos havia um olhar superior de entender aquilo como manifestação do pensamento “primitivo” Havia respeito, havia pluralidade, portanto muito mais que tolerância, havia a convivência fazendo um belo tecido social.

Após saudar à rua, pedindo permissão e proteção a Exu, o cortejo saiu pelas ruas, duas mulheres negras levavam na cabeça os balaios . Eram tão fortes em sua abnegação ao culto da deusa. O calor deveria ser para elas mais intenso e fustigante devido as roupas de cerimônia, muito pano e turbantes. Mas era essa sua cota de sacrifício que davam para o orixá, para sua casa de santo e,  sem sombra de dúvida, para a nossa cidade que anda tão precisada de energia positiva e do axé de Iemanjá. Afinal somos uma cidade costeira, somos cidade de  da orla marítima.

Todos estavam ali com um doce olhar sobre o que lhes é diverso mais comum por sermos simplesmente humanos. Acho que Gandhi aprovaria como com certeza, Iemanjá aprovou todas as oferendas, as energias e o amor de seus filhos quando o barco chegou até o meio do mar e lhe entregou a oferenda

Ainda há muita esperança de uma humanidade que saiba usufruir da paz.

Flavia Ferreira

Flavia Ferreira

Jornalista e viajante nas horas vagas. Sou apaixonada por conhecer novos locais e culturas, assim como por um café quentinho e uma bela taça de vinho.