Verônica Nascimento, seu filho e uma biblioteca
Verônica Nascimento, seu filho e uma biblioteca
A história de uma mulher preta, fora dos padrões que se tornou uma aliada na resistência da cultura brasileira
Por Rafaela Lohana
Julho é o mês das mulheres negras, comemorado nacionalmente pela data que faz memória à Tereza de Benguela e internacionalmente como um marco a todas as aquelas nascidas na América Latina e Caribe. São cerca de 200 milhões de pessoas que se identificam como afrodescendentes nestas partes do mundo – segundo a Associação Mujeres Afro – e empenhados na temática, a entrevista desse mês não poderia ser diferente, senão com uma preta.
Verônica Nascimento é atuante na área de Produção Cultural, atualmente moradora da Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Mãe, avó e compactuante com as religiões de matrizes africanas e “fora dos padrões”. O processo de compreensão da sua negritude para ela ocorreu muito cedo, eram nítidas as diferentes nuances de tratamento diante de contextos escolares, ambiente de trabalho, entre outras relações para com o outro e com ela mesma.
“Eu entendi isso desde muito pequena, perdi a minha mãe carnal muito cedo e vim morar no Rio (de Janeiro) com meu pai. Então, quando cheguei a primeira coisa que aconteceu comigo foi a minha madrasta cortar o meu cabelo. Sempre tive um cabelo enorme, com tranças … bocão, meu nariz largo, todos os meus traços são muito fortes de uma mulher negra, e até os meus vinte e poucos anos não usava batom. Não usava porque meus lábios eram muito grandes, meus esmaltes eram: areia, terra do sol e chocante (quando muito). Não eram outras cores.” – contou.
Assim como muitas crianças pretas que, infelizmente, passam por situações de bullying e preconceito, a fama de “brigona” na infância era uma das formas de armadura para burlar esse sistema.
“Adorava festa junina, mas nunca poderia ser a viúva, a sinhazinha, porque eu não tinha a cor certa (…) eu tinha uma fama tipo ‘bad girl’ porque eu batia em todo mundo, brigava o tempo todo, então era mais fácil pensar que ‘ah, eles não me chamam porque eu sou brigona’ o que era mentira, era porque eu era preta! E além de preta era brigona’”. – rematou Verônica em tom bem descontraído.
Livros que abrem caminhos
Seu filho e uma biblioteca foram o estopim para que ela se encontrasse como produtora, entre 2005 e 2006, em Nova Iguaçu.
“ Me mudei para onde eu moro hoje, não tinha uma biblioteca. E eu queria muito uma biblioteca para o meu filho estudar porque ele estava em idade escolar e para ter acesso teria que ir a um bairro vizinho. Então conversei com o presidente da Associação de Moradores.” – conta Verônica que ,dias depois, recebeu a notícia de que a biblioteca existiria, mas que ela seria designada para ser a responsável.
“Eu me assustei com aquilo e disse que não, que só tinha dado a ideia, não tinha tempo para cuidar de biblioteca. (…) doei alguns livros meus, acervo pessoal, conversei com amigos ao redor para doação de outros. E a gente montou uma biblioteca.”. – relembrou.
A partir daí surgiu uma sequência de acontecimentos, essa preta determinada começou a ser conhecida pelo projeto de incentivo periférico que se tornou a biblioteca e antes de fazer parte da Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, integrou a equipe do SESC do município, dando aula de produção textual para as crianças moradoras do entorno. Num primeiro momento, o salário foi o que a impulsionou, até então ela trabalhava como faxineira, e o pagamento era duas vezes uma diária como empregada.
O olhar apurado em pessoas do cotidiano foi o diferencial na hora da conclusão do projeto que tinha Charles Siqueira como coordenador.
“A primeira pessoa que eu pensei foi o Dadinho – escultor das cidades. Ele viva em Nova Iguaçu fazendo esculturas em galhos de árvore, e ele tem obras no Louvre, no Museu Casa do Pontal, mas as pessoas achavam que ele era um maluco porque vivia com um canivete. Mas quando cheguei no Dadinho, ele já tinha falecido. E minha segunda opção foi meu vizinho, Raimundo Rodriguez, que é um artista plástico, que todos os dias estava varrendo ou lavando a calçada; um homem conhecido no meio da arte, mas no dia a dia era só o Raimundo.” – esse convite para participar do trabalho de conclusão do projeto foi aceito, então surgiram outras ideias, parcerias que foram materializadas e reunidas no livreto “Minha Rua Tem História” feito pelo público que era atendido, que vivia num contexto dramático e violento, contendo suas histórias do dia a dia.
O próximo trabalho também fez sucesso, foi com a maquete da cidade que se sucedeu o convite para trabalhar com Raimundo numa pesquisa de artesanatos, foi a primeira vez que Verônica se reconheceu com conhecimento empírico: “Foi a primeira vez que eu ouvi essa palavra.” – recordou.
“^} daí eu tinha que fazer as fichas e digitalizar, mas não sabia ligar um computador. Era um inferno!”
Apesar de ser uma tarefa “infernal”, ela não desistiu tão fácil, foi quando começou a ser encorajada a estudar novamente para se manter no cargo. Logo após, veio a vontade de iniciar um curso superior, já envolvida com a produção cultural ,ela deixou para trás o sonho de antes que era a Assistência Social.
Com jornada tripla, mãe, produtora e estudante, Verônica se formou na Universidade Cândido Mendes, longe da sua casa e sendo a mais velha da sua turma. “Tinha uns cinco a seis negros. Havia um professor que era negro e não sabia que era negro (risos), a postura muitas vezes com os alunos era uma coisa que me irritava e a gente tinha grandes embates.” – contou.
Junto de movimentos políticos, econômicos e ainda com medo ela saiu do cargo do município e um tempo depois foi admitida na Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro a convite de Juliana Lopes, uma grande amiga.
“Era um mundo diferente. Mas o que eu não posso negar é que a equipe que trabalhou em Nova Iguaçu naquela época estava de parabéns. Trouxe a Escola Livre de Cinema para Miguel Couto e outros bairros, por conta disso vários jovens acabaram entrando no audiovisual. Trouxe um festival de cinema para Nova Iguaçu, réplicas de Gauguin … Deu para Nova Iguaçu, que já é um celeiro cultural, a visibilidade que ela precisava.” – relatou.
Sobre a experiência da mudança da Baixada para o Rio, a diversidade de pontos culturais foi o que mais chamou atenção. Dos 196 pontos sob sua responsabilidade, 70% deles eram geridos por mulheres. “Era capoeira, rezadeira, caiçaras, indígenas, audiovisual, etc. Eu pensei ‘meu Deus vou ficar louca aqui!’”.
Uma das coisas que Verônica também colocou em evidência foram os casos de gerência de pontos culturais, principalmente de origem afro-brasileira, que tem como lideranças pessoas que não fazem parte daquela vivência.
“ Dentro de todo esse universo dos pontos de cultura tinham os quilombos, os jongos, e uma coisa que sempre me incomodou foi isso: a seguinte prática, principalmente no jongo de interior, que é a de receberem um monte de universitários, que tem as suas vivências e que as sugam verdadeiramente … não estou dizendo que são todos, mas já vi isso acontecendo e posso dizer isso com propriedade, que vão para lá, sugam o conhecimento, conseguem grana, às vezes saem do país, ensinando ou vivendo de maneira deturpada isso.”
Ela conta como é revoltante ver que projetos como esses se perdendo ou seguindo por mãos erradas pela falta de incentivo na sua elaboração pelas mãos das próprias lideranças. Disse que a partir dessa observação hoje tem uma certeza: “ Você tem que ser o protagonista das suas histórias e das suas vivências!”.
Grandes potências e novos horizontes
Verônica também nos fala sobre o potencial das favelas, e a necessidade de levar para essas realidades a produção consciente, principalmente na prestação de contas.
“ Já ouvi de procurador: ‘Não sei o porquê você insiste em dar dinheiro para essas pessoas que não sabem gastar’.”
“Perguntei: ‘ Como assim? As pessoas sabem gastar, só que a gente tem que ensinar para elas como gastar de forma correta.’ Ele estava falando de pessoas pretas, que estão dentro das comunidades, de periferias.”.
Gestores com o olhar pontualmente direcionado para políticas públicas, não só para alguns grupos, mas para todos é uma das coisas que não podem ser negligenciadas, segundo a produtora.
Recentemente, ela tem se dedicado a produções com o Intermuseus, no projeto de Requalificação do Sítio Roberto Burle Marx que neste mês (27) se tornou Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, também dando apoio ao Cidade Escola Aprendiz e gerenciando sua microempresa de elaboração de projetos e prestação de contas, a Adimó, para além de outros projetos que tem mudado as narrativas já existentes na nossa cultura.
Questionadora, assistindo a reprises de novelas antigas percebeu que ao final de cada capítulo há uma frase de que “os comportamentos dos personagens correspondem aos comportamentos da época.”, e ela apontou que o caminho de representações das mulheres negras tem mudado, mas que ainda é preciso percorrer muito mais.
“Quando eu estava na universidade, pensei o que as pessoas fariam com essa galera que questiona e pergunta. E o que fico triste é que percebo hoje, que essa mesma galera é a que está morrendo, sendo agredida … que está com um alvo nas costas simplesmente porque questiona.” – relatou. Para Verônica, o país tem grandes produções que causam impacto, somente pela retratação do povo negro nas imagens.
“ Pequena, não tomava banho, não escovava dentes, não lavava cabelo … porque não tinha nada em que eu me via na televisão.” – relembrou, constando que agora é mais crítica em relação ao que assiste, procurando consumir o que vem de “mãos pretas” e que retrateo povo preto.
Porém curiosamente é que de maneira geral, as suas oportunidades vieram de mãos brancas. Mulheres brancas que sempre a encorajaram na sua trajetória e a quem ela é muito grata. “Poucas mulheres pretas me viram como uma aliada, e acredito que isso vem muito do que foi imbuído em nós, esse lugar de disputa.”.
“ Dentro desse contexto em que nós estamos morrendo, surge um movimento de sororidade, empatia, nenhuma a menos. Somos mulheres, somos diversas, somos diferentes … ou a gente entende que podemos dominar ou vamos continuar sendo mortas cada uma dentro do seu mundo. “
Enfim que viva Verônica ainda por muitos anos, para ensinar e apoiar as iniciativas da produção cultural, do emponderamento feminino, principalmente das pretas e continua sendo a protagonista da linda história que escreve todos os dias !