Todo transporte público tem um pouco de navio negreiro
Todo transporte público tem um pouco de navio negreiro
Por Eneida Salles Damazio
Aqui em casa, seis da manhãé hora de assistir ao Bom Dia/RJ da TV Globo.
Na agitação rotineira que antecede à saída para o trabalho, vai-se ouvindo como se fosse um rádio as primeiras notícias do dia envoltas na simpatia de âncoras e apresentadores e por essa simpatia suaviza-se um pouco da dureza cotidiana do que se ouve e se vê.
Ontem a suspensão, pelo governo estadual, das medidas de restrição que embasavam o isolamento social teve o primeiro dia de efeito concreto sobre a vida dos moradores do estado. A imagem que me veio à mente, ao ver as pessoas embarcando em trens e ônibus, foi a de pessoas impiedosamente enviadas para morte. Hoje, enquanto digito este artigo, sou informada – pelo mesmo Bom Dia- que um sensato juiz (Bruno Bodart da Costa da 7ª. Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do RJ) derrubou trechos de decretos que na prática implodiam o único remédio do qual dispomos para fugir da Covid-19. Que alívio!
As constantes reclamações de passageiros e denúncias de falta de transparência e descaso das empresas de transporte público – principalmente os ônibus – são um exemplo, quase um microcosmo para entendermos como os empresários brasileiros conduzem seus negócios e como bem lá no fundo enxergam seus consumidores. Foi-se o tempo em que eram chamados de fregueses até para demonstrar uma certa camaradagem e consideração. Também foi um tempo em que o freguês era para ser bem tratado, pra querer voltar. O tempo do “freguês tem sempre razão”.
Há muito via a imagem do BRT lotado, há muito essa imagem é uma constante nesse noticiário.
Incomoda, mesmo que eu não me sirva deles. Adoro andar de trem porque sempre uso esse transporte fora do horário do rush e sempre no contrafluxo. Por isso ouço, concordo que é um absurdo e sigo em frente no meu dia. Ontem, porém, foi a gota d’água: as imagens de passageiros do BRT e de outras linhas de ônibus empilhados, socados, amassados espremidos, lembrou-me dos trens alemães que conduziam os judeus para os campos de concentração. Infelizmente, esse tipo de imagem voltou com uma virulência sempre vista mas não totalmente dimensionada.
Sim, senhoras e senhores, a palavra adequada para este triste cenário é virulência. Palavra perfeita para um sociedade que curte a viralização de mensagens, de fotos e, de uns tempos pra cá, principalmente de ofensas. Um sociedade que já se acostumou a conviver com vírus, então, tem dificuldade em ver como problema de pegar um que não nos deixa respirar.
I can’t breath – repetiu por oito minutos o negro cujo pescoço era devidamente esmagado por um policial, que não por coincidência era branco. Mas que negro chato! Fica com esse mimimi de querer respirar.
Tempos sombrios quando não se consegue nem respirar. Tempos tristes quando se tem negado esse direito.
Isso aí! Talvez respirar esteja virando privilégio. Quem tem poder político ou poder econômico acha que pode tudo.
Pode, inclusive, enfiar goela a baixo o coronavírus nesse tipo de gente. Mas atônitos, perguntaríamos:’ Vocês estão colocando em risco e até eventualmente matando seus consumidores?’
E a resposta eivada de tranquila frieza e pretenso pragmatismo seria: “ Não se preocupe, pobre sempre vai haver. Essa gente sempre viraliza…”
Entendi.
Pois é, então é preciso movimentar os negócios e viralizar o patrimônio.
Foi de cortar o coração ver aquelas pessoas expostas a uma doença que mata quando não se tem nem água nem sabão para dela se prevenir,
Da minha segurança, trabalhando em casa, olhei para a TV,
O noticiário insistia em mostrar aqueles ônibus superlotados, não os vi… Vi apenas navios negreiros sobre rodas.
Como se sabe navios negreiros eram os que traziam mão de obra escrava para as colônias. Foram eles que trouxeram muitos antepassados de milhões de brasileiros. Inclusive os meus. Inclusive os de George Floyd para os Estado Unidos.
Navios negreiros também eram chamados de navios tumbeiros. Tumbas navegantes singrando mares nunca dantes navegados.
Alguns estudiosos do assunto indicam que a taxa de mortalidade da carga escrava, isto é, de seres humanos, era de 12 a 13%.
E esse cálculo só foi possível chegar até nós porque se fazia necessário ter tudo anotado e devidamente contabilizado. Afinal, com dinheiro não se brinca! Imagine: se perder um retrovisor, aqui no Rio, desemboca quase num homicídio por linchamento, imagine ter carga escrava diminuída sem as devias explicações. Ainda por cima no século XVIII !
Ah! Não foram contabilizados a morte da tripulação também. Hoje motoristas e cobradores vítimas da Covid-19 já são mais de cinquenta rodoviários que já morreram em todo o Brasil.
Então, os navios negreiros eram transportes em que pessoas sobreviviam durante dois meses, aproximadamente, sem condições dignas.
Os maus tratos começavam antes de mesmo do embarque e dentro deste protocolo do suplício, um dos momentos altos era quando aquele contingente humano ficava amontoado à espera do momento do embarque. Qualquer semelhança com a plataforma do BRT na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro não é mera coincidência. Aliás, o Rio foi um dos principais portos de recebimento dessa carga humana durante o período de tráfico negreiro.
Se as condições de embarque eram ruins, a precariedade dos condições do navio eram terríveis. Nos porões, onde a carga humana – como eram vistos por todos – ficava estocada até o desembarque no seu destino, havia muito pouca ventilação e nenhuma condição adequada de higiene.
E o negociante de escravos tinha seu lucro assegurado por qual fator ? Advinhe se você for capaz !.Se você pensou em superlotação, acertou em cheio ! Como a gente vai vendo ao conhecer a história das coisas, mentalidade é igual a vírus: fica no ar e tem sempre alguém que pega nesta pátria amada, Brasil…
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Matéria da Superinteressante :
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-um-navio-negreiro-da-epoca-da-escravidao/
Poema Navio Negreiro de Castro Alves, na íntegra declamado por Paulo Autran:
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