O outro: Este Não-Eu que o obscurantista quer eliminar
O outro: Este Não-Eu que o obscurantista quer eliminar
Por Cristina Nunes de Sant’Anna
Pedir a volta do AI-5 e, por conseguinte, da ditadura. Defender com veemência que o esférico planeta Terra é plano, acusar universidades — espaços de ciência, pesquisa e cultura por definição e razão de ser — de locais de balbúrdia, desprezar o conhecimento, os direitos humanos, fazer da própria crença uma arma contra o outro tornaram-se práticas rotineiras entre muitos, nestes últimos tempos. Muitos mesmo a empunhar bandeiras, como faziam os cruzados da Idade Média, entre os séculos X e XXII, que matavam e morriam em nome de Deus. No longo curso da História, a intolerância obscurantista tem estado presente nas relações humanas, fundadas em sentimentos e crenças religiosas.
São obscurantistas os que aclamam o mal, em nome de um suposto bem: obscurantismo vem do latim, obscurans, escurecimento. Não por acaso estas gentes se apegam à ignorância, tal qual um dogma, tal qual um amuleto para protegê-los da luz que representa o saber, a sabedoria, a cultura. O amuleto do obscurantismo serve para protegê-los também de quem for diferente deles, de quem pensar diferente deles: o não-eles, o outro, a ser intolerado.
Outro é todo aquele que nada sabe sobre o que os obscurantistas decidem ser relevante (ou não) para ser sabido. Melhor dizendo, outro é aquele que não está do lado certo — o dele, obscurantista. Outros nada sabem ou conhecem aquilo que que mereça ser sabido e permitido saber (todo obscurantista é um censor). Ao contrário dele, obscurantista, que sabe o que saber e o que não saber. A alteridade não faz parte de sua formação humana.
Neste caldo de obscurantismo e intolerância, o outro seria também um herege, isto é, aquele que vive na heresia. A palavra vem do grego e significa escolha. Hereges fariam, então, por exemplo, más escolhas relativas aos ensinamentos de Deus, ou melhor, às interpretações que se dão àquelas que seriam as palavras de Deus e a religião (a dele) está entre um dos temas mais caros ao obscurantista.
Estas gentes que portam amuletos obscurantistas deploram investimentos em educação, ciência, cultura, arte. Nomeiam-se pessoas de bem. Costumam desprezar o meio ambiente e agredir, com palavras, gestos e atitudes minorias, negros, mulheres: um não-ele qualquer que seja e que não carregue um breve obscurantista tal qual o que o obscurantista porta com orgulho. Obscurantistas só possuem certezas. A dúvida saudável da incompletude do conhecimento, com seu eterno e delicioso sabor de ‘quero mais’ não os encanta. Na verdade, apavora-os. Têm-se como virtuosos e superiores aos demais em suas crenças e opiniões. Sim, opiniões. Não ciência ou conhecimento. Sim, crença, que se insere na ordem do mágico. A superioridade que se arvoram leva-os a chamar preconceito de ‘mimimi’ e vitimismo de quem o sofre.
Estas gentes obscuras com seus patuás do obscurantismo não têm qualquer pudor, empatia ou fraternidade com a dor do não-ele, que é outro. E por quê? Porque este outro é um inimigo a abater, eliminar, excluir, anular, apagar, banir, extinguir.
Vocábulos que fazem parte do limitado campo semântico do obscurantista. Exemplos sobram: numa passeata pela volta da ditadura, há poucos dias, um obscurantista bateu fortemente numa mulher tão somente porque a vítima discordava da passeata. No auge de uma pandemia, há quem faça carreatas chamando os que estão em casa, em quarentena, por recomendação do Ministério da Saúde, de vagabundos e preguiçosos.
Há também quem vá para a rua e diga que é só uma gripezinha. Isto diante de mais de três mil contaminados e perto de 200 mortos pela Covid 19 (os números são do Ministério da Saúde, na segunda semana de março de 2020). Mas obscurantistas, primeiro, negaram os números, as mortes e a doença. Diante de cada vez mais gente morta a cada dia, afirmam que há um medicamento panacéia, para curar o mal. Sem qualquer suporte científico, remorso ou vergonha, postam fakenews aos montes em suas redes sociais, prestando um desserviço à população. Para os obscurantistas, não importam as consequências irresponsáveis de seus gestos, desde que suas certezas sigam incólumes.
Gentes obscurantistas são incapazes de amar o diferente. Tampouco de sofrer pela dor do outro. Se pudessem, estes inquisidores do século XXI nos fariam arder em fogueiras, caso não negássemos o heliocentrismo, tal qual fez Galileu.
John Locke e Voltaire trataram especificamente do tema intolerância, uma das principais formas de obscurantismo em seus pressupostos filosóficos, em séculos diferentes. O primeiro, em 1689, e o segundo em 1763.
Locke escreveu uma Carta acerca da Tolerância e Voltaire, um Tratado sobre a Tolerância. Locke escreveu sua carta em uma época conturbada para ele. Fugira para a Holanda porque na Inglaterra era acusado de fazer parte de conspirações para matar o rei Carlos. Além disso, também assistira aos conflitos entre religiosos de diferentes credos, deflagrados pela intolerância religiosa de cada um. Para o iluminista Voltaire, a Igreja Católica era o símbolo supremo da intolerância e da injustiça. O pensador trata da tolerância aliada ao respeito, à solidariedade. Para ele, a tolerância só pode ser exercida se a razão e o conhecimento forem capazes de injetar luz nas trevas da ignorância, do preconceito e do fanatismo, sobretudo o religioso, que fazem intolerantes notáveis: na França de Voltaire, aqueles que não eram católicos, eram duramente perseguidos. A intolerância religiosa era tanta que, em 1787, Luis XVI publicou um edital de tolerância, para proteger os não católicos.
Pode-se intuir dos dois pensadores que a boa convivência, aliada ao conhecimento, leva-nos a posturas éticas, como o respeito às diferenças: de etnia, cultura, sexo, credo, embora Locke defendesse a separação entre Igreja e Estado e Voltaire a subordinação da Igreja ao Estado.
O Iluminismo e a tolerância vencerão novamente e obscurantismo vai ser superado.
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