A Rua do Ouvidor tem história pra contar
Imagine: voltamos no tempo e aportamos nosso veículo de passagem no Porto do Rio de Janeiro. Por sorte, bem a tempo de presenciarmos a inauguração de uma rua com “vocação para a eternidade“, como certa vez dissera o imortal Nelson Rodrigues em outro contexto. Nascia, em 1567, o Desvio do Mar, atual Rua do Ouvidor, via que já foi a mais importante do Rio de Janeiro.
No mesmo ano, a batalha que ficou conhecida como ‘Batalha do Rio de Janeiro’ estabeleceu a derrota definitiva dos franceses que estavam no território classificado, hoje, como Rio de Janeiro. À época, a Rua do Ouvidor chamava-se Desvio do Mar, devido ao caminho que dava acesso aos armazéns e trapiches do antigo porto do Rio. E foi assim até os anos de 1870, quando o ouvidor Francisco Berquó da Silveira, oficial de justiça da cidade, foi morar em uma casa na esquina com a Rua do Carmo. Não demorou para que as pessoas da região começassem a chamar a ruela de “Rua do Ouvidor”.
A chegada da Família Real
Com a chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, a Rua do Ouvidor passou a reunir um expressivo número de comerciantes e lojistas europeus que desembarcavam na cidade e alojavam-se próximos ao porto. Esse movimento populacional concentrou grifes e serviços na rua, que passou a ser frequentada por cidadãos de classes sociais mais privilegiadas. A vida comercial na Ouvidor era tão pungente que até Maria Leopoldina, que em 1822 viera a ser Imperatriz do Brasil, fazia suas visitas para compras.
Não à toa, a Rua do Ouvidor, em pouco tempo, passou a ser considerada a rua mais importante da cidade. Nenhuma outra podia alcançá-la, sobretudo, em valor simbólico, pois a Rua do Ouvidor, sem demora, converteu-se em patrimônio da cidade e dos cidadãos.
A intelectualidade na Ouvidor
A chegada dos europeus na região também contribuiu para uma autêntica efervescência cultural nesse canto da cidade. A inauguração de dezenas de livrarias, aliada ao fato do Rio de Janeiro ser a capital do Brasil, despertou a atenção e o interesse de intelectuais de todo o país que chegavam à capital em busca de emprego. Esses sujeitos passaram a se encontrar na Ouvidor para conversar, discutir, debater, conspirar, comer, beber e muitos outros infinitivos de todas as ordens. A rua, que em outrora possuía o forte engodo do mercadejo a seu favor, passou a condensar a atividade intelectual da cidade. Tão logo, grandes nomes da literatura brasileira, como Lima Barreto, Machado de Assis, Coelho Netto e Olavo Bilac, eram constantemente vistos esgueirando-se pelos estreitos e concorridos espaços da rua para frequentar seus cafés, confeitarias e livrarias.
Grandes jornais da época também se localizavam na Rua do Ouvidor, como o ‘Jornal do Commercio’, o ‘Diário de Notícias’ e a ‘Gazeta de Notícias’. Além disso, as primeiras reuniões dos precursores da Academia Brasileira de Letras (ABL) foram realizadas nos cafés e livrarias da rua.
Alberto Cohen, autor do Livro “Ouvidor, a rua do Rio”, declarou, em entrevista recente, que a Rua do Ouvidor “Era a principal artéria do centro do Rio de Janeiro. E tudo que acontecia aqui, irradiava para o resto do país”.
A Ouvidor, nos seguidos anos da proclamação da república no Brasil, passou a representar o centro da cidade que era a capital do Brasil. A rua se consolidou como o cerne da cultura, da política, do comércio e das finanças no país, tornando-se um espaço fundamental e necessário aos atores da “vida central” brasileira.
– A Rua do Ouvidor chegou a ter 50 livrarias funcionando ao mesmo tempo. Acho que no mundo hoje em dia, você não tem uma rua que tenha 50 livrarias, disse o historiador Milton Teixeira ao jornal O Dia, em entrevista realizada em 2012.
Os anos 1900
Com a virada do século, criou-se a necessidade de repensar a cidade para que o Rio de Janeiro ainda pudesse acompanhar as grandes urbes europeias no que se refere à cultura, arquitetura e padrões sociais. Havia, para mais, uma concentração de residentes contingencial nessa região da cidade, o que a tornava, sobretudo, insalubre.
Paris era, assumidamente, o reflexo a ser espelhado, e foi pensando nas nuances da Cidade Luz que o então prefeito do Rio, Francisco Pereira Passos, decidiu iniciar um processo que alteraria profundamente a distribuição de residências e comércios da região do centro.
A construção da Avenida Central em 1904, atual Avenida Rio Branco, e da Avenida Presidente Vargas, no final dos anos 1930, foram fundamentais para a sucumbência, em partes, da Rua do Ouvidor. O trânsito de pessoas e de dinheiro havia sido rearranjado, resguardando à icônica rua que dantes fora o centro de tudo que acontecia na cidade um papel de coadjuvante na vida do carioca.
Hoje, além de conectar o Largo de São Francisco à Orla Conde, a Rua do Ouvidor ainda concentra algum comércio, possui um número razoável de bares e restaurantes e tem algumas agências bancárias na sua extensão. Existe, sim, um movimento comercial e financeiro que sustenta, lá de longe, mas de muito longe mesmo, o espírito vivaz e luzente do que um dia fora da rua. Porém, a alma cultural da Ouvidor conserva-se somente através dos relatos e da memória de quem pôde presenciá-la. Apenas a Livraria Folha Seca representa com tenacidade a resistência do corpo intelectual/literário da rua, o que, infelizmente, não a impediu de tê-la se tornado uma rua de passagem, e não mais de congregação.
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Excelente texto! Quem escreveu está de parabéns! Muito interessante conhecermos um pedaço da história do nosso RJ ! Show de bola!