Cantar para resistir

A história não nos deixa mentir: a música é aliada de nossa trajetória. Onde quer que possamos ir sobre a linha do tempo de nossa existência, teremos a companhia de uma canção capaz de expressar as vozes e os sentimentos de milhões de homens e mulheres. Em tempos de resistência, a música se veste de hino, assume importantes holofotes e assegura um resgate de memória fiel, corajoso e potente.

Geraldo Vandré, 1968

Foi assim que a canção de Geraldo Vandré, brasileiro da Paraíba, se apresentou ao mundo em 1968. As angústias de quem vivia no Brasil e não era beneficiado pela ditadura civil-militar iniciada quatro anos antes fora expressada com esmero e zelo nos versos de “Pra não dizer que não falei das flores”.

É bem verdade: os anos 60 não foram fáceis de se viver no mundo inteiro. Lá fora, a Guerra do Vietnã ainda estava longe de acabar, movimentos de contracultura explodiam em vários países e a tônica da vez que movia a juventude era posicionar-se contra os sistemas vigentes. No Brasil, a ditadura militar alcançava o ápice de sua brutalidade: em dezembro de ’68, o AI-5 (Ato Institucional Número Cinco) passou a vigorar em todo o território nacional. Foi um ano de muito “baixos” no Brasil, que, no entanto, encontrou, na arte, refúgio e fôlego para seguir em frente.

Apesar de toda censura, perseguição e tortura a milhares de artistas no Brasil, a chamada ‘Era dos Festivais’ vivia seu auge. Em ’68, aconteceu a terceira edição do Festival Internacional da Canção, organizado pela Rede Globo. No evento, a música de Geraldo Vandré, que ficou conhecida como “Caminhando”, esteve entre as finalistas do concurso, mas ainda que não o tenha vencido, conquistou o público e foi unânime na opinião dos espectadores e da plateia.

O júri concedeu a vitória a Sabiá, composição de Chico Buarque e Tom Jobim. O público vaiou a escolha, acreditando que “Caminhando” merecia mais a vitória. Em sua autobiografia lançada mais de 20 anos depois do ocorrido, o então diretor da Globo Walter Clark revelou que a emissora havia recebido ordens do Exército para que a canção, claramente crítica ao regime, não ganhasse.

Nesta mesma edição, Caetano Veloso cantou, acompanhados d’Os Mutantes, “É Proibido Proibir”, música que foi desclassificada ainda na fase eliminatória. Sua vez no palco, porém, o possibilitou a proclamação de um discurso que entraria para a história.

O refrão da música de Geraldo Vandré tornou-se um apelo à resistência ao regime ditatorial. Após o concurso, Vandré teve de se exilar. Morou no Chile e em alguns países da Europa. Voltou em 1973, mas sua canção esteve censurada de 1968 até 1979.

Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer

Sua música é uma pérola em tempos de pouca riqueza em um país tão rico. Sua coragem ao compô-la e, sobretudo, expô-la, classificam-no como um enorme personagem da história daquele tempo e da história do Brasil. Geraldo Vandré foi um homem que conseguiu reunir em seus versos o que todo um povo queria dizer, mas não podia. Sua luta para ser a voz da renitência é meritória e faz jus ao reconhecimento que conquistou.

Do outro lado do Atlântico…

No Velho Continente, uma outra canção, de um outro tempo, proferia as vozes de um outro povo que se recusava a viver sob ordens e vigências de um governo fascista. Apesar da popularização recente em razão da utilização da faixa na série “La Casa de Papel”, Bella Ciao data de muito antes da produção da Netflix.

A música conta a história de um homem que está se despedindo de sua esposa por saber que muito em breve será morto na luta pela resistência e pela liberdade de seu povo.

Manifestação de resistência na Itália durante a Segunda Guerra Mundial

A origem da canção, contudo, é incerta, tanto em data, quanto em referência ao real compositor ou compositora.

Bella Ciao (traduzida popularmente em português como Querida, Adeus) é uma canção anônima, e não existe nenhum dado que esclareça definitivamente sua procedência. Há apenas semelhanças textuais e musicais com antigas composições. Ela é o resultado de uma longa jornada, que foi definindo este hino à liberdade até a versão conhecida por todos e entoada em cerca de 40 idiomas.

Bella Ciao é, assumidamente, uma canção feita pela resistência e para a resistência. Um hino na luta antifascista na Itália que uniu todos os segmentos contrários ao regime do ditador Benito Mussolini, entre eles democratas-cristãos, comunistas, socialistas, republicanos e até monarquistas. Essa reunião de disparidades escancarou a urgência de se estar unido diante de uma ameaça extremamente violenta que negava princípios básicos da democracia e cultuava intolerâncias. Nesse sentido, Bella Ciao se apresenta como um drama real e sem rodeios ao trazer em sua letra a iminência da morte. Servir ao propósito primeiro, que era reconquistar a liberdade e lutar para preservá-la, portanto, era a única missão a ser cumprida.

Essas canções são joias do engenho humano. Tratar de cuidá-las e conservar suas histórias são deveres inerentes ao exercício democrático, tão necessário em todos os tempos. Geraldo Vandré e seja lá quem for o compositor de Bella Ciao foram competentes e precisamente cirúrgicos ao estabelecerem um altíssimo padrão ao se tratar de cânticos de resistência capazes de expressar o drama de povos oprimidos, mas que dispõem de bravura e brio para seguirem na luta.

Pedro Júnior

Pedro Júnior

Jornalista de tudo e de qualquer coisa.