O descanso do velho baiano
Morreu Moraes. Aquele que apesar de ter nome e sobrenome, não precisava deste fazia tempo. Antônio Carlos é Moraes e Moraes Moreira é mais Moraes ainda. Morreu o homem baiano do interior do estado, e ficou para o mundo a lição de sua felicidade, tão acessível, tal qual fazer e ouvir música, a Bahia e o amor ao Flamengo.
Nasceu em 8 de julho de 1947 em Ituaçu, cidade que fica a mais de 500 quilômetros da capital Salvador. Dorival dizia que “A Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem“. Sabendo que tem, alimenta a própria vaidade com consciência para nunca deixar de ter. Um solo que não se cansa de frutificar ao mundo rostos, vozes, olhos, pés e mãos da ordem do mais valioso quilate registrado. E Moraes se encaixa nessa seção. É indiscutível.
Começou a desenvolver sua musicalidade com uma sanfona de 12 baixos que aprendeu a tocar ainda menino em Ituaçu. Enquanto sanfoneiro, fez apresentações em festas de São João e outras festividades e eventos na cidade. Mais tarde, já adolescente, fora apresentado ao violão, instrumento que carregaria consigo durante toda a vida.
Aos 19, mudou-se para Salvador para estudar música no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia. Na capital, Moraes conheceu Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Tom Zé, conterrâneos que fariam parte de um capítulo fundamental da sua vida: Os Novos Baianos
Mocidade baiana
Tudo começou no Teatro Vila Velha (Salvador – BA) com o espetáculo “O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal”. Os participantes: Luiz Dias Galvão, engenheiro agrônomo formado e praticante, poeta, aficionado por música, cinema e teatro, 32 anos; Antônio Carlos de Morais Pires, 21 anos de audição do alto-falante de Turiassu, no interior da Bahia; Paulo Roberto de Figueiredo, egresso da cidadania de Santa Inês e ex-crooner da Orquesta Avanço, presença obrigatória nos bailes da região de Salvador, 23 anos, apelidado de La Bouche ou Paulinho Boca de Cantor; a niteroiense Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, recém-chegada a Salvador, onde comemoraria seus dezessete anos morando debaixo da ponte; Jorginho, Carlinhos, Lico e Pedro Anibal de Oliveira Gomes, o Pepeu, que integravam a banda de apoio, os Leif’s.
Esse encontro em ’68 estabeleceria o prefácio da formação de um grupo que, na década, seguinte apresentaria ao mundo um álbum musicalmente singular, de estética forte, natureza excêntrica e muita presença. Sui generis. Apesar de não ser o primeiro disco dos Novos Baianos (É Ferro na Boneca), Acabou Chorare (1972) é uma dessas obras que sempre estará na lista dos maiores e melhores álbuns da história da música brasileira. Brasil Pandeiro, Mistério do Planeta, Preta Pretinha e A Menina Dança foram algumas das composições de Moraes lançadas no álbum que indicariam a virtude e classe da banda 66,6% baiana.
Em pleno caos de 1969, em meio às ruínas das bananas e da antropofagia renascentista do tropicalismo, que surgem os malandros, loucos e imprevisíveis Novos Baianos. Novos porque pós-Gil e Caetano; baianos porque sim. Ou, como conta Pepeu, porque o grupo ia se apresentar na Record e ainda não tinha nome; então, na hora deles entrarem em cena, um funcionário da emissora gritou: – Chama aí esses novos baianos!
Ainda nos anos 70, a banda lançou mais três discos, entre eles o excelente Novos Baianos F.C. (1973). Além do NBF.C., em 1974 foi lançado o Vamos pro Mundo (1974) e, dois anos mais tarde, o Caia na Estrada e Perigas Ver, álbuns menos badalados e que já indicavam algumas notas fora do tom entre os integrantes da banda.
Moraes decide deixar os Novos Baianos em 1975. Alguns desentendimentos estavam tomando conta do ambiente da banda, e foi então que o cantor e compositor decidiu seguir carreira solo. No ano seguinte, Moraes se tornou o primeiro artista a cantar em trio elétrico no Carnaval de Salvador, que à época já era uma festa consagrada e reunia multidões.
No final dos anos 90, Moraes propôs aos Baianos o lançamento de um novo disco com músicas inéditas e alguns sucessos de outros álbuns. Infinito Circular (1997) soou como uma ode àquele tempo e representou, também, um exercício de aceitação da saudade que sentiam de estarem juntos fazendo aquilo que os consagrou antes de serem solos.
Já nos anos 2000, publicou A História dos Novos Baianos e Outros Versos (2007), cordel que se propõe a contar a história da banda e de seus personagens.
Nos últimos anos, Moraes esteve trabalhando em três frentes: show com os Novos Baianos, a carreira solo e o projeto com Davi Moraes, seu filho. Ao longo de toda a carreira, Moraes esteve envolvido em mais de 60 lançamentos de discos, compreendendo os Novos Baianos, a carreira solo, Trio Elétrico Dodô e Osmar e parcerias com Pepeu Gomes.
Moraes foi um homem de todos os tempos, capaz de contagiar todas as raças, dialogar com todos os públicos e fazer-se presente em milhões de memórias. Mais uma grande pessoa que a Bahia nos deu. Mais um grande legado para a música e para a arte do Brasil.
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