Petra e a balbúrdia do Oscar
Um estudo sobre a eficácia do papel político do cinema.
Neste domingo teve Oscar! É uma das mais importantes premiações mundiais para cinema e ,sem sombra de dúvida a mais badalada e cheia de glamour de todas.
Também é, com absoluta certeza, a maior premiação da indústria cinematográfica americana e raramente abre uma brecha para o reconhecimento de que há excelência em produções de outros países no páreo “oficial”. Para não parecem malvados imperialistas xenófobos – até porque na área de cinema não são malvados assim – há categorias que abrem espaço para todo o cinema feito no planeta. Por exemplo, para uma produção de caráter ficcional não americana há a premiação na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Já no gênero documentário, produções americanas e estrangeiras concorrem na disputa para receberem a estatuetazinha dourada que materializa o conceito “o melhor” . Ser “o melhor dentre os melhores” empodera o currículo de todos os envolvidos na produção, estimula uma última onda de corrida aos cinemas – e hoje em dia de busca nas plataformas de streaming – para ver ou rever a obra premiada e, talvez seja o mais gratificante, entra para lista de clássicos da sétima arte.
O Oscar para um filme brasileiro
Um dos maiores anseios de muitos brasileiros é ver um filme, um ator, uma atriz,um roteirista, um diretor brasileiros levando para casa e trazendo para o país o tão sonhado Oscar. Já houve indicações para filmes, atrizes – grande Fernanda Montenegro – , diretores. Muito se torceu, mas na “hora H”, o simpático carequinha cor de ouro foi parar em outras mãos, geralmente americanas.
O documentário Democracia em vertigem da cineasta Petra Costa concorre esse ano e poderá ser uma chance de realizar o nosso cinéfilo sonho patriótico, portanto seria de esperar uma torcida do tipo 202.768.562 em ação, pra frente Brasil dos nossos corações, mas não é bem isso que está acontecendo.
A indicação – o pomo da discórdia
Durante a última semana, nas redes sociais, nos grandes veículos de comunicação ocorreu uma enxurrada de críticas e ataques ao documentário e a sua diretora. O tom subiu muito mais pelas entrevistas dadas pela diretora nos EUA em função da produção estar concorrendo ao Oscar. A cineasta foi defenestrada de todas as maneiras e a obra embora sendo de caráter documental foi rotulada de ficção, como se ficção fosse um xingamento, de fakenews até chegar à expressão de mentira deslavada. Por extensão Petra não escapou da sanha linguisticamente ensandecida. o rótulo mais leve que lhe foi colado à testa foi de menina mimada, passando por essa sujeita e descendo cada vez mais. È óbvio que ela sabia que estaria em meio a um fogo cruzado de imensas proporções.Mas isso não justifica a virulência covarde dos ataques.
Democracia em vertigem é uma obra que mesmo sedo um documentário retrata fatos a partir de um posicionamento claro. Petra Costa, em momento algum, finge uma imparcialidade, em nenhum momento esconde que defende um lado da questão Como está fazendo cinema, permite-se – e nisso está certa –demonstrar que não está ali para fingir uma imparcialidade impossível para qualquer ser humano, mesmo que o gênero que adote seja o documental.
Mas, apesar de o filme inserir-se num contexto de luta política que ele mesmo faz questão de retratar, fica a pergunta no ar: por que a virulência do ataque ?
Os detratores da obra exibem quase que como um troféu o argumento de que o texto por ter uma abordagem mais intimista, mais pessoal seria então ficcional, uma história inventada, que aqueles fatos não aconteceram bem assim, foram distorcidos, mal interpretados etc. Não se deve creditar a este tipo de argumento desonestidade intelectual. Contudo, com certeza, é desconhecimento ou incompreensão da natureza do ficcional e do processo de apreensão da realidade
Verdade e Impressão da realidade no cinema
Os detratores de Petra aferram-se com fervor quase fanático ao seguinte binômio texto não ficcional-objetividade absoluta para acusar o documentário de ser parcial ou até mesmo falacioso.
Democracia em vertigem ao documentar fatos bem recentes de nossa vida política o faz a partir de um gênero chamado de relato pessoal, o relato pessoal de uma brasileira, tão brasileira quanto os demais que foram afetados por tais acontecimentos de alguma forma. Por isso, há a opção pela 1ª. pessoa como foco narrativo e longe de ser um demérito é um dos grandes trunfos do filme.
As pessoas que atacaram a obra após sua indicação ao Oscar contavam que o teor simplista ou até maliciosamente distorcido sobre verdade, objetividade, ficcionalidade pudessem diminuir o impacto da leitura perspicaz e contundente feita sobre movimentações populares de 2013, a vida da família da cineasta entrelaçada com a vida política do país, o papel de políticos de direita ou de extrema-direita presentes no filme. Essas pessoas falam para um contingente da população que entende o mundo apenas ou prioritariamente a partir do que se convencionou chamar de senso comum.
De uma maneira geral, quando se pensa em um documentário, pensa-se no ato de relatar algo do qual não estamos ligados por laços afetivos ou emocionais, fala-se sobre algo que desperta o nosso interesse puramente por motivos “racionais”. Haveria uma distância estabelecida entre quem fala e o assunto sobre o qual se fala. A essa distância costuma-se chamar de objetividade, que na perspectiva do senso comum equivale ao conceito de verdade, e a verdade opõe-se à mentira.
A balbúrdia furibunda que Petra despertou no espectro político que lhe é oposto vem de um pequeno detalhe muito característico da atividade cinematográfica : uma força maior da impressão da realidade proporcionada pelo cinema em relação às demais artes. Também se dá pelo fato do documentário ser um dos gêneros não-ficcionais da narrativa.
Em um artigo famoso que recomendamos a leitura integral (A respeito da Impressão de Realidade no Cinema), Christian Metz explica como se constrói a impressão da realidade nos filmes. Importante teórico do cinema, pioneiro, inclusive, em aplicar a linguística de Saussure às teorias da semiologia cinematográfica, Metz examina as relações existentes entre cinema e realidade pois , segundo ele, é nesta relação que reside a força e o fascínio que o cinema exerce sobre o público. O artigo está mais voltado para a análise de filmes ficcionais, o que até é melhor para a análise que se faz da polêmica suscitada pelo documentário de Petra.
O espectador no cinema, mais do que no teatro, tem a sensação de estar vendo a realidade viva diante de si. A impressão da realidade nasce do fato de o cinema ser a arte das “imagens em movimento”. O movimento é sempre percebido como sendo real pelo ser humano. A realidade do movimento e da aparência das formas, leva o espectador a experimentar o sentimento de vida concreta. Seja um filme ficcional ou um filme não-ficcional , os espectadores os entendem como se percebesse a realidade objetiva. Já no teatro, a estilização muito forte do cenário, por exemplo já seria um impeditivo a essa impressão de realidade.
Essa sensação desencadeia nele um processo de participação simultaneamente perceptivo e afetivo. Tal mecanismo conquista de imediato uma espécie de credibilidade quase total. Metz sinaliza que essa credibilidade vem do fato de que qualquer filme apresenta-se para o seu público como um enunciado afirmativo, como se ele dissesse : É assim !. Há uma assertividade total.
No caso de Democracia em Vertigem, por ser um documentário essa impressão de credibilidade amplia-se de uma maneira colossal e por isso preocupa agentes políticos que querem justificar as atuais condições politico-partidárias instaladas no país. Por isso partiram para um ataque nos termos de verdade versus mentira que não é pertinente. Nem deve ser a postura recomendável de agentes políticos. Mas do que transformar uma indicação ao Oscar numa rinha de galos, seria mais inteligente que eles se não pudessem reconhecer o valor do fato para o desempenho da cultura do país, para o fortalecimento do soft power, como se diz por aí ,do Brasil, deveriam ter feito, pelo menos, como manda a boa educação, parabenizar e mudar de assunto.
O cinema como arte é uma atividade política, mas principalmente é uma atividade que nos engrandece como seres humanos. Negar mais essa realidade traz mais problemas do que pretensas vitórias.Sabia que o filme não levaria o Oscar, mas isso é menos importante. Democracia em vertigem cumpriu o seu papel como obra cinematográfica, cumpriu seu papel como instante da nossa história. Soube com dignidade representar a essência de nossa brasilidade, de nossa nacionalidade .Não há maior prêmio do que este
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