Rebeca de Andrade: jovem negra inscrita no imaginário coletivo do Brasil, este Matriarcado de Pindorama

Por Eneida Salles Damazio

Não gosto de esportes, acho chato acompanhar, acho mais chato ainda fazer atividade física – embora saiba o quanto é necessário -. Também tenho andado muito triste com o Brasil. O Brasil que elegeu um governo pelo que ele tinha de pior: quem pregava o erro como acerto indo ao encontro daquela mania do brasileiro de desfazer das práticas civilizadas em nome da exaltação do nosso “jeitinho” . Não há como ficar contente com o pais que despreza vacina, medidas sanitárias e ceifa mais de 400 mil vidas por capricho e ganância .

E foi esse Brasil que ,simbolicamente, tomou as ruas desde 2013, com a camisa da seleção brasileira – as iniciais minúsculas são de propósito , mesmo – destilando ódio, inclusive à Democracia, e fazendo apologia á barbárie e ao obscurantismo. A birra só aumentou.

Mas é claro que Copa e Olimpíada sempre me tocam o coração de uma certa maneira. Lembro da figura de meu pai e meu avô acompanhando com entusiasmo esses eventos esportivos. Homens bons, honrados, fraternos com todos. Enfim: homens que, na minha cabeça, representavam o Brasil que aprendi a amar,. mas sempre dentro de uma perspectiva crítica. Como eles me ensinaram a fazer.

Por saudosismo, procuro nas Olimpíadas acompanhar alguma coisa, como se isso pudesse trazer de volta papai e vovô para perto de mim.

Dentre os esportes que acompanho estão a Ginástica Rítmica, pois pra mim é arte fantasiada de esporte – e a Ginástica Artística ( repararam nas iniciais maiúsculas empregadas ? ) .Fui adolescente na década de 70, quando havia Guerra Fria de verdade, e as duas superpotências se enfrentavam em todos os territórios possíveis: o esporte era um deles. Os atletas da União Soviética e dos Estados Unidos viviam pressionados por todos os lados pra conseguir medalhas e conseguiam. E nossos atletas, coitadinhos davam tudo de si, mas sem recursos e incentivos, nadavam e nadavam, mas impreterivelmente morriam na praia, sem jamais alcançar qualquer posição no pódio.

Muita coisa mudou de lá para cá. Acabou a ditadura militar e os governos da redemocratização investiram recursos. Mesmo debaixo de muitas críticas superficiais conseguimos sediar uma Copa do Mundo e uma Olímpiada. Papai e vovô, se ainda vivos estivessem, iriam aos jogos levando meu irmão e meus sobrinhos a tiracolo, entre surpresos e orgulhosos. E como tem sempre de ser a História vai se tecendo nos pequenos dias sempre contínuos.

Ontem chorei mais uma vez de emoção e orgulho da gente do meu pais. Foi um choro mais leve do que o do ano passado, quando frente à pandemia vi nossos pesquisadores e cientistas, buscando uma saída para a doença sem terem recursos – devido ao ataque que a Ciência, Cultura e Artes – reparem de novo nas maiúsculas – estão sofrendo nesse país atual que não é o meu Brasil.

Chorei de alegria pelo feito de Rebeca Andrade. Uma paulistinha de 22 anos, negra, vinda da periferia, de origem humilde ter conseguido um feito inédito para o esporte nacional: primeira medalha olímpica na Ginástica Artística ! Um esporte que, até o advento das políticas públicas serem implantadas no Brasil, era “coisa de rico”.

Rebeca lutou até o último segundo e chegou pertíssimo da medalha de ouro. Foi muito legal ver a apreensão contida da sinoamericana, havia verdadeiro medo de perder a tão sonhada medalha de ouro. Também foi bonito ver os olhos marejados do técnico brasileiro Mais bonito ainda foi ver a postura modesta, jamais humilde, da mais nova campeã olímpica. Acostumada a repartir, fez questão no pódio , de através de gesto indicar que a medalha era de todos nós. Contudo, lindo mesmo foi ver, a Rebeca usando máscara para dar entrevista. isto sim é atitude de um verdadeiro ídolo, ter boas atitudes, boas práticas.

Rebeca Andrade, com seu feito histórico, praticamente encerra a semana que começou no dia 25 , dia da Mulher Negra no Brasil. Na homenagem que o Cultura Em movimento está fazendo à data. no nosso Instagram, levantamos o perfil de sete mulheres negras que fizeram história. Em quase todos, destacamos o pioneirismo. Foram as pioneiras em alguma área importante. Mas para nós aqui, do CEM ficou uma triste constatação que ainda perdura como vemos no caso de Rebeca: seu pioneirismo se deve ao fato de suas chances serem infimamente menores que mulheres e homens brancos. São pioneiras pois que tudo para elas é infinitamente mais difícil de ser conseguido. Essa dificuldade se deve ao beco sem saída que a desigualdade social coloca os descendentes do processo de escravização .

Rebeca também vai se tornar um símbolo de esperança de que este Brasil que agora revive o fascismo de Plinio Salgado e seu Integralismo, seja mais uma vez derrotado por um povo que prefere a alegria como a prova dos nove.

Rebeca ,ao misturar Bach com Baile de Favela, mostrou que uma de nossas maiores riquezas é o espírito antropofágico já registrado por outro paulista dos bons – Oswald de Andrade -.

O funk da coreografia de Rebeca torna-se mais pungente se lembrarmos que em dezembro 2019, nove jovens perderam a vida num baile de favela, a favela de Paraisópolis, pela violência de 31 policiais indiciados pelo ocorrido. Esse ato de antropofagia cultural, tão caracteristicamente brasileiro – inscreverá o corpo olímpico de Rebeca em nosso imaginário coletivo como uma das senhoras de um país a ser regido pelo matriarcado, símbolo meio utópico, meio possível de um lugar de Solidariedade, Companheirismo e Democracia.

Eneida Damazio

Eneida Damazio

Eneida é mestre em Literatura Brasileira, Estudante de Jornalismo e aficionada por cultura e seus movimentos.