Um sonho para fechar o Carnaval de 2020
O carnaval de 2020 marca o início de uma nova década reafirmando uma das características mais marcantes do reinado de Momo: a contestação ao estabelecido.
Além de ser, como afirmava Oswald de Andrade, uma ‘festa da raça’’, da raça brasileira, o carnaval, é, de muitas formas, uma festa política seja porque permite transgredir no terreno dos costumes, seja porque permite uma atitude libertária das amarras da convecção e dos papéis sociais que ocupamos pelo trezentos e tantos dias restantes do ano. Seja ainda porque se pode fazer uma crítica ao cotidiano político do país.
Este ano as escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo foram bem diretas nas suas indiretas. Nas ruas, nos blocos, a contestação e o descontentamento se fantasiam em pura irreverência e transformam-se em trincheiras que não deixam o riso do brasileiro fenecer.
Sim, o riso como o dinheiro anda curto por aqui. A recessão econômica que se acentuou no ano passado e o pibinho ridículo de tão pequeninho, potencializados pelo o culto ao obscurantismo tem feito o brasileiro andar triste, cabisbaixo, praticamente taciturno. Tempos difíceis, tempos bicudos.
Manuel Bandeira, um poeta eterno
Por causa desse clima de fim de baile que atormenta o Brasil, lembrei de um poema de Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. É um dos poemas a que recorro quando me vejo diante da necessidade visceral de entrar em contato com a possibilidade de me sentir viva. Chama-se Sonho de Uma Terça-feira Gorda . Faz parte de um livro de 1919: Carnaval. Significativo, não é ?
Recomendo a leitura que para alguns será uma descoberta e, para outros, será o revisitar -com novos olhares- um belo lugar literário . O importante é que se leia cada vez mais poesia para curar a alma e falar em poesia é lembrar, falar, e , sobretudo, ler Manuel Bandeira.
Carnaval é uma obra quase que de transição. O poeta ainda estava preso à estética parnasiana, muito formal e de vocabulário rebuscado mas já flertava – quase namorava – com uma nova maneira de se fazer poesia que somente três anos depois seria batizada oficialmente como modernista. Inclusive neste livro encontramos o famoso poema “ Os Sapos” que fez parte das apresentações da Semana de Arte Moderna em 1922. No poema, Bandeira rompe claramente com o Parnasianismo, a começar pelo tema –sapos – que era uma indireta aos poetas parnasianos. Mais carnavalização, impossível.
Em Carnaval, misturam-se personagens de fantasias muito populares na época. Vemos pierrôs, colombinas e arlequins desfilando e transitando pelas páginas tal como se via à época nas ruas, principalmente as do Rio de Janeiro, cidade eleita pelo poeta para viver. Fiel às tradições do Carnaval, homenageia sua origem, na vertente ocidental, trazendo para o cortejo o Deus Pã e as bacantes. Democraticamente misturam-se Vênus para caixeiros, às virgens e vulgívagas em clima de erotismo e de encontros e desencontros amorosos.
Carnaval é a expressão viva do carnaval porque, mais do que uma contestação política ligada a fatos históricos concretos, é a expressão da própria condição humana com suas dores, sabores, alegrias, angústias, incertezas e frágeis esperanças em que dias melhores virão, apesar de você, como diria outro gigante das palavras –Chico Buarque.
Sonho de Uma Terça-feira Gorda, o poema
Eis uma linda lição para tempos difíceis, na voz de um bardo:
Sonho de uma terça-feira gorda
Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava… Que nos penetrava como uma espada de fogo…
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas.
E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
– Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso.
Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes – Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.
Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros…
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso.
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
– A profunda, a silenciosa alegria…
Manuel Bandeira
Então, brindemos essa terça-feira gorda de 2020 e mantenhamos acesa essa alegria luminosa até o próximo Carnaval.
Créditos:
Poema extraído de: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas e poemas traduzidos. Rio de Janeiro. José Olympio. 1986. p. 70
Imagem: PICASSO, Pablo. Arlequim com guitarra. 1918
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