Exu é o Diabo?
Exu é o Diabo?
Por Eneida Salles Damazio
Continuando nossa série de artigos sobre como a cultura brasileira entende a relação dos orixás e divindades africanas , vamos examinar mais um aspecto da figura de Exu, tão popular no sudeste e nordeste do país.
A Umbanda foi a primeira religião genuinamente brasileira e, como não poderia deixar de ser, é sincrética.
Umbanda é um amálgama das heranças dos negros africanos, da herança dos primeiros donos das terras, os índios, e do colonizador europeu.
Sim, o colonizador europeu forneceu a umbanda muito matéria-prima. Em primeiro lugar pelo catolicismo que foi imposto através do processo de catequese e, posteriormente, em fins do século XIX, o kardecismo também integrou-se à sociedade brasileira a ponto de o primeiro guia da umbanda, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, ter se apresentado em uma sessão espírita kardecista em 1920.
Esse teor cristão é que termina – seja pela vertente católica, seja pela vertente kardecista – demonizando a figura de Exu.
Tal demonização nasceu por causa da condenação característica da cultura cristã à sexualidade, à sensualidade. Já na cultura nagô, a imagem de Exu está fortemente ligada às ideias de interação e reparação. E é através dessas ideias que ele liga-se também à atividade sexual e de um modo muito positivo. Vamos entender melhor ?
“Sendo interação e resultado, Exu está profundamente associado à atividade sexual. O falo e todas as suas formas transferidas, tais como seu gorro tradicional com sua longa ponta caída, os vários estilos de penteados, em forma de crista, de longas tranças ou rabos de cavalo caindo pelas costas, seu Ogo ou maço, sua lança, dos quais vários autores trataram longamente e que figuram em quase todas as representações de Exu, são símbolos da atividade sexual e da reprodução como resultado da anterior. As numerosas cabacinhas, representação deslocada dos testículos, sublinham ainda mais claramente sua preocupação com a atividade sexual. Este aspecto de Exu é muito conhecido, provavelmente o aspecto mais comentado, e aquele que mais escandalizou os primeiros missionários e viajantes.. “( Santos, Juana Elbein dos . Os nagôs e a morte, pg 164)
Como se vê a compreensão de Exu como o Mal foi fácil de resolver. Misturando: a tradição africana com catequese católica e, posteriormente,acrescentando pitadas da tradição kardecista.
Além disso, a tradição africana, como podemos perceber por itãs- narrativas sagradas que falam da essência dos orixás através de pequenas histórias – sempre enfatizou seu lado trapaceiro, irreverente, por vezes até cruel. Daí a relacioná-lo a Satanás foi um passo.
Contudo, não existe, na cultura, Yorubá essa ideia de bem versus mal, como nas culturas europeias e cristãs. Essa caracterização de Exu como agente do mal, portanto é falsa, mas muitos adeptos da umbanda ,e do próprio candomblé ,ajudam – por falta de conhecimento- a reforçá-la.
E as imagens desses catiços também contribuem para sua má fama de endiabrados. Mulheres desnudas, homens com olhares ameaçadores Todos eles sempre cercados por caveiras, tridentes e até chifres demoníacos, vez ou outra.
Com o kardecismo, criou-se a ideia de evolução espiritual, assim ficamos acreditando que todos os espíritos que encarnam no planeta – que por sinal é um planeta de “provas e expiações”, destinados a espíritos ainda pouco evoluídos na senda da moral, ou melhor da ética – são espíritos de alguma maneira inferiores, pouco virtuosos.
Como Exu não faz parte do panteão de orixás da umbanda, como poderia ser o princípio da realização? Como poderia ser o solucionador de problemas que o caracteriza na cultura nagô? Como poderia ser entendido como um remédio criado sobrenatural criado por Oludumarê não só para cada pessoa como também para cada Orixá ? Por isso é que os nagôs acreditam que todo o ser humano tem o seu Exu particular, embora não possa vê-lo e da mesma forma cada Orixá tem o seu Exu particular que os acompanha mas é visto por eles. É esse Exu particular que lhes permite executar aquilo de que tem necessidade.
A partir daí, a Umbanda já atravessada pelas concepções kardecistas, entendeu Exu não como um orixá, mas sim como o espírito de uma pessoa desencarnada que muito errou na sua última passagem pela Terra, presa, após a morte, num plano astral inferior, não tendo nem a permissão de reencarnar para poder evoluir. Tem de se contentar em incorporar, vez por outra num médium – chamado “cavalo”, ou “aparelho” quando a influência kardecista é maior no centro. Por isso são chamados de exus catiços, em oposição ao Exu Bara do candomblé, esse sim, um princípio, muitas vezes até entendido como orixá.
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Contudo os exus catiços são sempre ligados a um orixá, e na prática da Umbanda são muitas vezes chamados de escravos do orixá, a memória da triste experiência da escravatura, provavelmente é a responsável por nomeá-los de catiço, sinônimo para escravo . São espíritos que não só fazem a limpeza astral, mas ajudam a seres humanos a resolverem seus problemas da vida prática.
Hoje, já podemos encontrar vários livros que contam a vida terrena dessas entidades. Vidas marcadas por violência, grandes erros e amores trágicos, pelo menos essa é a vida do chefe ou da chefe da falange. É o caso de Tranca Rua, o mais popular dos catiços brasileiros.
Muito querido pelo adeptos da umbanda, seu Tranca Rua ou Ruas é pau pra toda obra. De arrumar emprego, a livrar de uma perseguição ou ajudar a comprar o carro dos sonhos, como pode ser comprovado pelos inúmeros adesivos colados nos automóveis dos subúrbios cariocas com os dizeres “Tranca Rua quem me deu”.
E onde fica Santo Antônio nesse rolo?
Não sabemos ao certo, porque há vinculação de santo Antônio com Exu. Acredito que seja pela capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, pela sua dedicação em levar o pão – a sobrevivência – aos pobres e por se meter a resolver casos amorosos.
Mas que a ligação existe, existe e é muito forte, podemos afirmar com toda certeza. Um dos pontos – espécie de hino religioso – deixa bem visível a vinculação entre eles.
Geralmente é cantado no início da sessão, na gira, como se diz, de exu em muitos centros de umbanda aqui no Rio;. A letra do ponto é assim:
Santo Antônio, pequenino
Amansador de burro bravo,
Quem mexer com Santo Antônio
Tá mexendo com o Diabo.
Rodeia, rodeia
Rodeia, meu Santo Antônio, rodeia
E então a gira fica boa e esquenta.
Como se vê, santo Antônio está no meio de um imbróglio com Exu, catiços e com o diabo. Mas é um imbróglio bem divertido, bem brasileiro e se bem administrado nunca será maléfico.
Então, oremos para Santo Antônio e louvemos Exu, seja Bara ou catiço, para que haja proteção e prosperidade em nossos caminhos hoje e sempre.
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