Cancela nervosa

A “cultura do cancelamento” não é mais novidade para o usuário regular de redes sociais em 2020. Basta abrir o Twitter ou o Facebook. Um breve esforço de pesquisa nos permitirá, inclusive, encontrar práticas e hábitos que datam do século passado e que operam nos exatos moldes da nova nomenclatura, como os linchamentos e o já internético ban. O que há de novo, portanto, na cultura do cancelamento deste tempo?

Algumas particularidades desse novo movimento precisam ser destacadas porque expressam, ainda que com ressalvas e evidentes exceções, a identidade dessa convenção. Sabe-se que exposição sempre foi um produto da cultura de internet, tornando viável e verdadeiramente lucrativo o trabalho com o audiovisual on-line (YouTube, Twitch, Netflix) e influência digital em redes sociais, por exemplo. As celebridades que antes eram personagens das grandes gravadoras, da televisão e do cinema, hoje dividem o tapete vermelho com grandes nomes do universo on-line, mercado indiscutivelmente consolidado e em vias de alcances cada vez maiores.

A internet como balança da justiça

E é justamente sobre a noção do alcance que a problemática do cancelamento se instala. A “cultura do like”, outra tradição virtual, caminha de mãos dadas com a cultura do cancelamento, uma vez que existe, inegavelmente, um tribunal on-line situado em cada uma das redes sociais que utilizamos. O funcionamento da “suprema corte”, entretanto, é trivial: a audiência e o julgamento de um caso definem-se a partir do número de likes que a publicação reúne, estatística que, embora sórdida, funciona como um verdadeiro termômetro sobre as tendências de momento no terreno on-line.

Em termos práticos, caso meu post alcance um expressivo número de likes, a mensagem será validada, ainda que o conteúdo seja especulativo, pouco e/ou nada apurado ou inverdadeiro. Nessas situações, é possível observar a formação de um triângulo amoroso difícil de ser desarticulado que envolve a cultura do cancelamento, as fake news e a noção de pós-verdade. Os algoritmos da própria rede social tratam de alavancar essas interações referentes ao assunto. Num piscar de olhos, um discernimento abreviado a respeito de um fato, uma fala, uma foto ou um vídeo, está estabelecido entre milhares de usuários.

Ônus e bônus?

A internet como ferramenta de trabalho, de pesquisa ou de entretenimento agrega imensuráveis valores ao seu uso. Porém, enquanto máscara, armadura e espada também permite violências capazes de arruinar vidas. O que acontece no âmbito on-line pode se estender a todo o resto off-line da vida de alguém. Não são poucos os casos de pessoas “canceladas” que perderam seus empregos e até, em situações mais extremas, cometeram suicídio .

Recentemente, no início do mês de junho, um caso nos Estados Unidos chamou atenção pela extensão das consequências causadas. Emmanuel Cafferty perdeu o emprego após uma foto sua estalando os dedos ter sido registrada e interpretada como um gesto racista por um usuário do Twitter. No mesmo dia, Cafferty foi suspenso do serviço. Cinco dias mais tarde, estaria demitido.

Cafferty disse ter pedido o melhor emprego que já teve na vida. Pai de três filhas, filho de migrantes mexicanos e sem ensino superior, pela primeira vez na vida, enquanto funcionário da empresa que o demitiu, passou a ter acesso a um plano de saúde e à aposentadoria.

O autor da fotografia e do primeiro post contra Cafferty admitiu à equipe local da emissora americana NBC que pode ter exagerado na interpretação que fez do suposto gesto e que, apesar de ter marcado a empresa em que Cafferty trabalhava em seu post, não queria que ele fosse demitido. O usuário apagou a mensagem original e a própria conta de Twitter. Mas já era tarde, o post havia viralizado, o emprego estava perdido.
Trecho retirado da BBC

Diante de tanta inconsistência, a cultura do cancelamento precisa ser repensada. A liberdade de expressão tem, sim, limites sobre o aceitável e o desfecho de um ataque pode ser trágico e irreversível. A internet, contudo, é apenas o palco de todo processo que transmite os verdadeiros atores da situação. No caso de George Floyd, por exemplo, as filmagens feitas por civis que expuseram os policiais envolvidos no crime contribuíram para a sentença correta ao exibir um assassinato, e não uma morte acidental.

No entanto, uma exposição virtual pode manifestar-se como faísca em floresta seca, contribuindo para uma sucessão absolutamente randômica e imprevisível de tudo que for possível, do fogo de palha ao incêndio, da fama ao ostracismo, da convicção à imprecisão, do bem ao mal. Dicotomias não faltam e a cultura do cancelamento se aproveita disso, pois trata-se, apenas e sobretudo, de estar certo ou errado aos olhos de quem publica.

Pedro Júnior

Pedro Júnior

Jornalista de tudo e de qualquer coisa.