Na Sapucaí: do Caos à Criação

Desfilei, neste sábado de Carnaval, na Acadêmicos do Sossego. Todo ano desfilo em escolas diferentes. Este ano foi na Sossego que abriu o desfile da Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

Com o dedão do pé “ralado” no meio da semana e a lombar anunciando que iria entrar em pane, tudo o que pensei foi: Ih…

Mas sempre pode piorar. Choveu muito no sábado todo. Pé pro alto, terminando de decorar o samba – lindo, difícil e enorme -, gel na lombar. E vi chegando a hora e a chuva sem dar trégua. A amiga Tânia manda uma mensagem, dizendo que comprou capa pra gente. Então, tá. É hora do último check list: fantasia em ordem, bolsinha com dinheiro, cartão do metrô, documentos e mais linha, agulha, esparadrapo, elástico, tesoura, alfinetes, celular. Nunca consegui entender como essa minha bolsinha sempre desafiou as leis da Física. É uma bolsinha mesmo, que sempre vai presa por dentro da fantasia. 

Faço um “estofadinho” no dedão do pé. Dou beijo na mãe que fez simpatia pra Santa  Clara ( ela me garante ser infalível pra parar aguaceiro), nos cachorros e vou ! 

Somos Tânia, Cláudia e eu. Entramos no metrô, vestimos as capas, carregando as fantasias num saco porque se formos vestidas vai molhar muito. O entorno da Sapucaí, às escuras. A metros do Sambódromo, onde, dizem, acontece um dos maiores espetáculos da Terra, não havia sequer uma  lâmpada de 40 watts acesa, havia buracos e enormes poças d’água. Alcançamos a concentração. Vestimos as fantasias. Mas cadê a nossa ala?! “Atrás do carro do trem“, informa a diretora. “Não sei”, informa outro dos organizadores. “Na frente do carro do elefante”, arrisca mais um. Corre pra cá, corre pra lá até achar. O sapato, de tecido, já todo mole e os pés encharcados. Passa carro alegórico, passam baianas com suas belas, históricas e amplas saias que quase nos derrubam. Gritos pra sairmos da frente porque lá vem um destaque com uma fantasia gigantesca pra subir no carro alegórico. A bagunça é total mas a solidariedade também reina absoluta por ali. Um ajuda o outro a se vestir, a segurar os apetrechos da fantasia, a consertar e ajeitar a fantasia.

Finalmente chega a hora de desfilar: como que por um encanto, tudo se arruma, tudo se ajeita, se organiza e se transforma. A escola torna-se linda e totalmente pronta à espera da autorização da Riotur para iniciar seu desfile. A chuva havia parado já. Entramos na Sapucaí e parecia que todos estávamos encantados num só desejo e sentimento – fazer a escola brilhar.

Não se sente cansaço, dor, raiva. Tudo passa. É como se flutuássemos, sublimes, até a dispersão.

E é nesta mesma dispersão que se dá um outro espetáculo à parte: o semblante suado e esgotado de cada componente ostenta um sorriso imenso e único de satisfação, alegria e paz, com a certeza do dever cumprido. Todos ali faríamos tudo de novo porque do caos surge a criação.

O dedão e a lombar passam bem. Ano que vem estou lá, de novo, pra viver esse caos que se transforma em epifania de cultura.

Ah, obrigada Santa Clara. Obrigada a todos os santos e entidades de todos os credos. Seres de História e da cultura de todos nós.

Cristina Nunes
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Cristina Nunes

Cristina Nunes de Sant' Anna é jornalista doutora em Ciências Sociais e pesquisadora associada do Laboratório de Comunicação e Consumo, Lacon Uerj e criadora do blog fanpage Literatura é bom pra vista.