O ensino de Língua Portuguesa e o mito da democracia racial brasileira

O ensino de Língua Portuguesa e o mito da democracia racial brasileira

Por Eneida Salles Damazio

Para encerrar a semana de comemorações do dia da Consciência Negra, nós , aqui do CEM, decidimos fechar com uma reflexão sobre qual o papel da educação hoje na redefinição dos espaços a serem ocupados pelos alunos de descendência africana .

Eu achei muito legal, pois me fez formalizar uma reflexão que eu venho tendo já há algum tempo sobre a minha condição étnica e o exercício da minha profissão como professora de língua portuguesa, nossa língua materna.

Interessante foi pensar em como eu percebo e como as pessoas me percebem como uma pessoa descendente de escravos que domina a língua dos escravocratas ao ponto de ensiná-la.

Dominar o registro culto passou a ser encarado, com  maior força ainda, como uma forma de esnobismo por uma grande parte da população.

Então imagina se a pessoa que apresenta essa proficiência no uso de registro tão difícil for uma pessoa negra, ou pior até, em certo sentido, for uma pessoa parda, mulata, miscigenada -que é o meu caso- ?!

A miscigenação é um interstício entre lados que a regra social quer que sejam rigidamente separados. A miscigenação é uma forma de transgressão. Ela mistura os espaços, desrespeita as regras, o estabelecido.

Por este viés, nesses 30  e poucos anos de magistério, principalmente na rede pública – o que é até um pouco paradoxal – eu já passei por muitos tipos de agressão por dominar a norma culta e ensiná-la. Esse tipo de situação, infelizmente, começou a ocorrer com mais frequência de uns oito , nove anos para cá.

A princípio, pensei que fosse um problema em relação à minha pessoa especificamente, mas depois de todo esse clima de ódio, de negacionismo, de elogio ao desconhecimento que yem varrido nosso país, eu fui contextualizando que o problema passa também e, talvez principalmente, pela cor da minha pele, né?

Enquanto pensava em como desenvolver este artigo, me peguei lembrando de um poema do Oswaldo de Andrade que tem super a ver com essa situação.

Um poema que desde os meus quinze anos me foi ensinado, nas maravilhosas aulas do meu inesquecível mestre Francisco Bottino, como um libelo de liberdade e de exemplo de convivência entre as raças, reforçando a ideia de que no Brasil não há racismo, há convivência harmoniosa entre negros e brancos.

É a leitura canônica que se faz desse poema à construção de uma verdadeira identidade brasileira expressa pela maneira brasileira de falarmos a língua portuguesa . Vamos reler para relembrar:

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

O poema data de 1925, quando da edição do primeiro livro de poesias de Oswald de Andrade, que havia participado ativamente da Semana de Arte Moderna , três anos antes.

É aplicação dos preceitos estéticos defendidos no manifesto Pau-Brasil que retomava, com uma pequena diferença, os esforços dos românticos brasileiros para criar uma literatura própria para um certo Estado-Nação chamado Brasil. O manifesto, diga-se de passagem, é do mesmo ano.

Retrato do escritor modernista Oswald de Andrade, feito por Tarsila do Amaral que além de companheira no movimento, foi também sua esposa.

Os dois primeiros níveis de leitura são bastante claros: o eu-lírico, que , inclusive, aparece disfarçado através do predomínio do uso da terceira pessoa , a primeira pessoa só aparece mesmo para criar a oposição, em torno de regras de colocação pronominal,  entre o falar lusitano (Dê-me um cigarro) e o falar brasileiro (Me dá um cigarro) – meio que esvazia a impressão de ser um posicionamento pessoal, ou uma opinião. Lemos o poema como se apresentasse fatos objetivos.

A escola, a gramática e o mulato sabido formam um conjunto único para se opor ao conjunto formado pelo bom negro e o bom branco da Nação Brasileira. O emprego do adjetivo valorativo bom, já mostra quem são os heróis da parada e quem, por extensão, são os vilões.

Observem que nesta leitura, eu utilizo – intencionalmente- conceitos advindos da gramática.

Não me considero uma mulata sabida, prefiro adjetivar-me como perspicaz. Uma mulata perspicaz.

Pela leitura que ficou clássica e é frequentemente reproduzida nos livros didáticos e nas nossas aulas de língua e literatura brasileira, inclusive nas várias que dei ao longo dos anos, há uma depreciação, meio que implícita do ensino de língua pela gramática.

Por extensão, há uma reprimenda à figura do professor e, portanto, por um processo de metonimização do saber que se aprende na escola. Uma escola que, à época, não deveria ser muito boa para os nossos padrões atuais, mas  para quem podiam frequentá-la asseguraria minimamente  condições melhores de vida num país extremamente desigual.

Se nós apenas contextualizarmos o poema em relação ao movimento modernista e ao desenvolvimento histórico da nossa literatura, pararemos neste segundo nível de leitura.

Mas se contextualizarmos o poema, relacionando-o às condições de escolarização da época, vamos ver emergir um cenário não tão progressista e democrático como fundo da figura Pronominais.

Mesmo que o texto já aponte para a ideia central de uma democracia racial entre brancos e negros na camaradagem do cigarro e do uso da próclise, começando o período  na frase “Me dá um cigarro”, ideia esta que se formalizaria através da produção intelectual e acadêmica da década de 40, ele não traz à cena as dificuldades imensas de acesso à escola , principalmente na década de 1920.

Para compor essa análise, fiz uma breve pesquisa sobre a desigualdade educacional no início do século XX e como o texto de Oswald aborda questões raciais, mais especificamente de tensionamento de relações raciais, pesquisei também como a população afrodescendente (negros e pardos ou miscigenados) era afetada pelas condições de escolarização do período.

Todos sabemos que a educação formal no Brasil foi um benefício para poucos. Os mais abastados podiam pagar por ela e só com muita relutância o poder público assumiu essa tarefa.

Essa relutância é fruto do nosso passado colonial, obviamente. As metrópoles não queriam ninguém pensando nas colônias, principalmente se as colônias fossem para mera exploração. Já pensou refletir criticamente sobre o fato de ser explorado?

Em um interessante estudo (Novas Medidas de Educação e de Desigualdade Educacional para a primeira metade do século XX no Brasil, cujo link está no final deste artigo), descobri dados alarmantes e que explicam a camaradagem entre esses bom negro e  bom branco da Nação Brasileira. Estavam no mesmo barco furado se fossem das camadas mais pobres da população, pois os autores do estudo, através de detalhado estudo estatístico que abrangeu todas as regiões do país, apontam os seguintes dados:

Entre 1900 e 1935 apenas 5% da população conseguia completar o ensino primário( o correspondente ao nosso Fundamental 1), ao passo que a parcela que fechava o ciclo do ensino secundário e técnico ( nosso Fundamental 2 e Ensino Médio, aproximadamente) estava abaixo dos 1%.

Ensino Superior, então, só  para 0,3% da população. E o estudo enfatiza que essa desigualdade social manifestava-se sobre forma bastante semelhante em todas as regiões do país.

E que é significativo para esta reflexão que  estamos construindo aqui é quea desigualdade educacional permaneceu constante até 1920 e a partir dessa década onde o poema está inserido, decresce lentamente !

Os autores deste mesmo estudo salientaram o fato de que no início do século XX (1900) a  maioria da população brasileira era composta por analfabetos (68,7%) de analfabetos.

 Isso abarcaria, portanto, brancos, negros e mulatos de uma maneira geral ( isso sem falar na população indígena que não trouxe para a discussão, pois não faz parte do poema).

Ora, para mim fica a seguinte indagação: se a maioria da população brasileira sequer sabia ler, por não frequentar a escola, o fato de dizer “ Me dá um cigarro.” é por afirmação de identidade nacional ou por falta de acesso à educação? Talvez seja essa pergunta que Oswald, como homem de elite do seu tempo, deixou de fazer.

Quando utiliza o adjetivo sabido, e não sábio, assume um posicionamento de desmerecer alguém que apesar de sua cor, teve acesso algo que à época, era prioritariamente um privilégio de uns poucos brancos ricos.

Mas mesmo o bom branco pobre na cadeia alimentar da sociedade cheia de resquícios da mentalidade escravocrata que até hoje mantém um fosso social entre brancos e negros, teria mais vantagem ou menos desvantagens que o bom preto e até mesmo o próprio mulato sabido.

Exagero, mimimi ?

Basta relembrarmos a recente polêmica quando o Magazine Luiza resolveu criar para o próximo ano um programa de trainee que oferecesse mais oportunidades a afrodescendentes. Teve até agentes do ministério público tentando embarcar a iniciativa e estabelecendo multas milionárias.

Na verdade, a discussão linguística proposta pelos modernistas refletia as preocupações de uma elite econômica-político-intelectual preocupada em construir ou reafirmar um projeto de nação iniciado pelos românticos, mas que assegurasse seu papel de comando nesse processo.

Mas era uma elite que se colocava longe da realidade de inúmeros negros e mulatos.

Como podemos ver no estudo de Joana Célia dos Passos( As desigualdades na escolarização da população negra e a Educação de Jovens e Adultos)  ao estudar o impacto da desigualdade social junto à população afrodescendente, remonta até a Constituição de 1824.

Esta constituição tornou a educação primária e gratuita o instrumento de cidadania e  de direito da população já brasileira à época. Mas curiosamente restringia esse direito aos livres e aos libertos(alforriados). Assim fortalecia-se o processo de exclusão da população negra.

Se  escola era excludente no Império , o projeto da escola republicana, alimentava o racismo através da exclusão de jovem negros ou pela visão de sua inclusão como algo ruim pelas teorias racistas, ou porque a crença na superioridade branca levava a entender  cada fracassos ou dificuldade motivada por a violência velada ou não da rejeição do alunado negro ou pardo, como prova inequívoca inferioridade biológica dos negros.

O modelo era encaixá-lo numa visão idealizada de branquitude. A autora sublinha que tal processo perpetua=se por cada geração em uma mesma família.

Oswad de Andrade é um escritor do qual gosto muito ,um homem que tinha de fato espírito democrático. Militou pelo partido comunista, inclusive.

Mas vinha de família quatrocentona paulista. Foi humano e como todos nós humanos , em algum momento, foi pensado pela ideologia de seu tempo e espaço social que ocupou.

Como eu também sou traída em minha criticidade vez por outra .

Infelizmente, vejo ainda hoje ,nas inúmeras escolas públicas nas quais trabalhei, um racismo estrutural muitas vezes velado, outras vezes ostensivo por parte de toda a comunidade escolar; racismo  bafejado pela ideia infelizmente sempre  exaltada de que a escola nada ensina. Que esse saber só é “teoria”. E o ensino de língua materna, infelizmente, também é assim.

De uns tempos para cá, muitos dos meus alunos negros, brancos, pardos – todos vindos da periferia – sentem uma profunda desconfiança quanto ao ensino e ao aprendizado da norma culta.

 Eles são, às vezes, Influenciados por colegas meus  -até mesmo da mesma disciplina-, igualmente bem intencionados como Oswald. Outras vezes por comunicadores ou artistas que procuram garantir seu público cativo.

Tristemente, meninos e meninas passam a acreditar que ao serem ensinados a ter proficiência em Língua Portuguesa e dominarem a norma culta  estão sendo “esculachados”,  humihados.

Espero que através dessa análise sobre a ideologia por trás de Pronominais, feita por esta mulata que se esforça todos os dias por manter-se perspicaz para não se tornar uma mula e por isso se esforça para ir além da ideologia, tenha comprovado que o conhecimento gramatical que preconiza a norma culta pode sim ser um conhecimento que nos liberte dos grilhões de um racismo tão estruturado quanto estruturante.

Saiba mais:

Leia, na íntegra, os dois artigos que embasaram o artigo:

Novas Medidas de Educação e de Desigualdade Educacional para a primeira metade do século XX no Brasil

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612019000400687

As desigualdades na escolarização da população negra e a Educação de Jovens e Adultos

https://periodicos.ifsc.edu.br/index.php/EJA/article/download/998/pdf

Eneida Damazio

Eneida Damazio

Eneida é mestre em Literatura Brasileira, Estudante de Jornalismo e aficionada por cultura e seus movimentos.