Quem diria ? Marx já foi um jovem

Quem diria ? Marx já foi um jovem

Por Eneida Salles Damazio

Nessa semana o Cine Brechó encontrou uma pérola cinematográfica: quando conhecemos a História vemos e fixamos a imagem, inclusive a imagem do físico, de seus personagens mais proeminentes.

 E é assim quando pensamos em Karl Marx a imagem é de um velho barbudo e carrancudo. Assim fica fácil achar que os comunistas ou são demônios ou são malucos. Não é uma figura que inspire simpatia. Mas nem por isso deixa de ser um personagem histórico pra lá de interessante.

A nossa pérola que está disponível online mostra-nos uma outra fase da vida de Marx. Podemos usufruir dela gratuitamente no canal Figura 2000 do You Tube.O fato de ser gratuito e por isso facilitar o acesso a todos com certeza agradaria ao protagonista do filme Le jeune Karl Marx.

O filme

O filme O Jovem Karl Marx ( Le jeune Karl Marx) do diretor Raul Peck, de 2017, consegue uma façanha impressionante: transformar, em nossa mente,  e principalmente na mente dos mais jovens que ao filme assistirem, a imagem habitual de Karl Marx.

Em lugar de um senhor de cabelos quase totalmente brancos desalinhados, farta barba grisalha, envolto num lúgubre terno negro típico do século XIX e um semblante pra lá de austero, nós, espectadores, nos deparamos  com um Karl Marx jovem vibrante, contestador e até mesmo boêmio, mas, acima de tudo, apaixonado pela vida, pela esposa – companheira também de causa – e por um projeto: a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

A opção por retratar o início da agitação intelectual e política dessa figura emblemática até hoje foi extremamente inteligente porque emprestou ao protagonista um frescor que suscita empatia com a geração mais jovem, tão acostumada a ir para o escurinho do cinema curtir filmes de terror e agora, a coqueluche do momento, os super-heróis, todos americanos, repaginados pelas crises de identidades motivadas por rasos dilemas existenciais nas recentes produções de Hollywood.

Ao contrário, no Jovem Karl Marx somos remetidos a tempos heroicos, tempos em que seres comuns se embebiam no heroísmo ao se arriscarem a serem presos, passarem por terríveis provações para  defender os “fracos e oprimidos” por idealismo.

Hoje, num mundo que flerta constantemente com o desencanto, num mundo em que o sonho de uma geração é o de ter um gadget de última geração, em que o consumismo – e não o comunismo – venceu a ponto de confundirmos a identidade com a propriedade, ver um grupo de pessoas que abriam mão da segurança, do status quo para ter solidariedade com os desvalidos, os explorados, os sempre perdedores, é um sopro de ar fresco que esperamos que a juventude do século XXI saiba aproveitar.

À época do lançamento muito da crítica sobre o filme batia na tecla de ser um filme conservador e que ao mesmo tempo transformava Marx e Engels em praticamente dois burguesinhos, praticamente mocinhos de filme americano, um dos pontos fracos do filme. Não é bem por aí: o filme nos mostra duas personagens que tinham condições de se dedicarem a viver da  atividade intelectual  e isto , infelizmente, numa sociedade capitalista pressupõe que se tenha alguns privilégios, inclusive econômicos . Justamente é esta condição financeira que vai lhes dar tempo e condições para  produzir a análise crítica da sociedade de seu tempo.

E eles viviam em um tempo em que havia romantismo e idealismo. Essa atmosfera fazia com que as pessoas vivenciassem o heroísmo. Eram, tempos heroicos, pois que eram tempos de revolução e levantes populares. As pessoas embriagavam-se num sentimento de grandiloquência  

     

Luta de classes na prática

Outro trunfo do roteiro é trazer não só o quanto de humanidade, das nossas contradições cotidianas, mas também como um conceito que muitas vezes entendemos como algo “somente teórico” – o de lutas de classe – permeia, concretamente, a vida e desemboca na construção teórica de K. Marx e F. Engels.

É igualmente tocante ver a beleza do companheirismo do rico e privilegiado Engels não só com Marx, mas com toda uma comunidade. A figura de Engels se apresenta como uma pessoa que consegue enxergar um outro tão diverso de si, compreender suas vicissitudes e amá-lo fraternamente. Não apenas isso, é bonito de se ver a calma e a firmeza de seu envolvimento com a operária contestadora que desafia a autoridade do patrão, seu futuro sogro, como o roteiro relata esse dado histórico controverso, e também vemos a doce e resoluta força na jovem e aristocrática esposa de Marx, de sua escolha consciente pela construção de um mundo novo

Mas o filme também tem outra riqueza para nos oferecer: mostra os meandros, os jogos de poder, até mesmo o marketing pessoal de filósofos, escritores e intelectuais em meados do século XIX; inclusive mostrando a dinâmica do mercado editorial, do papel social do jornalismo , da importância da produção de ensaios para a formação da consciência política.

Nesse contexto, é muito perspicaz mostrar a exploração até do trabalho intelectual   através da figura do editor Rudge que, apesar de ter posses, reluta em pagar o que deve ao jovem Marx.

Também vemos os embates por vaidade, mas também a disputa por hegemonia no campo intelectual através de produção de  textos para organizações políticas.

Formidável a cena em que Proudhon explica a “dupla dinâmica”, Marx e Engels, que muito da conduta de seu assistente deve ser desculpada e que ele próprio o tolera porque o rapaz tem família para sustentar.

Enfim, entre prazos de entrega, fechamentos truculentos de jornais e editoras, exílios e censuras, aprendemos sobre a importância da Imprensa e do mercado editorial a serviço de uma causa social, postura que nos dias atuais está em vias de desaparecer, pois os veículos de comunicação tem sua pauta muitas vezes determinada por interesses de grandes grupos econômicos. Pois é: ironicamente o Capital virou editor.

Quase ao final do filme, vemos um Marx cobrado por Engels, quase perdendo o trem da História, porque estava mais disposto a escrever três artigos para um jornal americano em função da remuneração a ser recebida, ao invés de investir sua energia escrevendo o texto que seria o futuro “Manifesto Comunista”.

Ainda bem, para a História que Marx tenha preferido, concordemos ou não, a experiência comunista.

Enfim, pegue a pipoca, inscreva-se no canal e descubra que aprender História é muitíssimo divertido. Bom filme.

Eneida Damazio

Eneida Damazio

Eneida é mestre em Literatura Brasileira, Estudante de Jornalismo e aficionada por cultura e seus movimentos.